Por Julianne Ferraz
No atual estágio da sociedade do conhecimento, há bibliografia para qualquer assunto. Em contextos históricos, as bruxas e suas bruxarias, outrora pagãs, passaram a acompanhar à sociedade ocidental cristã. Seu conhecimento foi transmitido de muitos modos, tal como no berço do Cristianismo, por meio de práticas da Igreja:

O paganismo sobreviveu […] na forma de ritos e costumes antigos tolerados ou aceitos e transformados por uma igreja muitas vezes indulgente, o paganismo passou como sangue materno para a nova religião (Durant, 1950, p. 675).
Em contextos culturais, esse universo prospecta livros e histórias orais como fontes criativas das várias possibilidades para as linguagens literárias e artísticas das quais o trabalho do bibliógrafo prospera. Besterman (1940) nos fornece uma história concisa da Bibliografia tanto como campo de interesse científico quanto testemunho do progresso do conhecimento humano.
Essa história prenuncia críticas contemporâneas em torno da implicação da classificação para acesso, uso e recepção de textos. Consequentemente, por meio dos pensamentos e ideias registradas nos livros, a bibliografia permite revelar os contextos e caminhos históricos pelos quais as várias culturas se encontram, embatem-se e se transmutam.
O assunto bruxa representa esse aspecto quando se pode dimensioná-la em contextos culturais ligados ao imaginário popular e às artes; também de interesse da ciência ou para assuntos religiosos. Respectivamente, esses contextos podem ser examinados em dimensões editoriais, do seguinte modo: entretenimento, científico e devocional.
No campo das bibliografias físicas, por exemplo, as reedições do Malleus maleficarum – tratado elaborado pelos inquisidores Herinrich Kraemer e James Sprenger – foram difundidas pela invenção da imprensa de Gutenberg e é possível acompanhá-lo até os Séculos XVI e XVII, que ainda gozava de prestígio entre os perseguidores de hereges.
Também permite tecer relações e descrições minuciosas sobre os detalhes gráficos e editoriais das sucessivas edições do martelo das bruxas. Além de compará-las, a justaposição dos escritos abre portas para se examinar as mudanças idiomáticas e de sentidos do célebre manual medieval redigido para a caça às bruxas no século XV.
Se no Malleus maleficarum, buscava-se definir e identificar bruxas, no plano das bibliografias intelectuais, é possível acompanhar universos complexos de saberes, práticas e documentos inesgotáveis como em textos, filmes, fotografias, músicas e, atualmente, em websites.
Desde épocas remotas, o paganismo – onde habitam bruxas e bruxarias, feitiços e feiticeiras, seres mágicos e divinos – foi revelado e exposto; surgem mais características que ampliam essas dimensões editoriais – As bruxas de Salem, por exemplo, são prosperadas em várias linguagens, desde a pesquisa acadêmica às suas versões fílmicas, séries televisivas, peças de teatro etc.
Todo esse conjunto, que não cessa de ser ampliado, não só eternizam a bruxa e sua bruxaria como as alimentam com formas, perfis, traços, identidades e memórias que vão sendo salvaguardadas por uma infinidade de bibliografias que, por sua vez, arrolam muitos tipos documentais, do livro impresso ao documento digital.
Uma bibliografia sobre bruxa ou bruxaria também pode interessar às comunidades de Teologia, Filosofia, História, Educação etc. A bibliografia seletiva de Arthur Machen (1888), intitulada Thesaurus incantatus, publicada no século XIX, arrola uma extensa lista de títulos de livro sobre bruxa e bruxaria, acrescentando as designações alquimia, ocultismo e feitiçaria como corolário literário editorial do fenômeno ‘bruxa’.
Tais designações fecundaram a organização de assuntos de bibliografias especializadas sobre o tema. Como identificar bruxas, afinal? Bom, qualquer resposta depende de qual contexto intelectual a bruxa está sendo localizada. No século XX a bibliografia sobre bruxa e bruxaria expandiu-se ainda mais, levando em consideração a diversidade de movimentos culturais que explodiram na época, por exemplo, o movimento New Age, que surgiu em 1960 e teve seu ápice criativo e de difusão entre as décadas de 1970 e 1980.
A literatura, cinema e televisão são linguagens que também contribuíram para o enriquecimento do imaginário popular e das bibliografias sobre bruxas e bruxarias. J. K. Rowling e o fenômeno Harry Potter exemplificam como uma obra livresca, para além de sua produção editorial, contou com uma produção cinematográfica contemplada com sete filmes que foram sucesso de bilheterias. Podemos também citar o seriado A Feiticeira, que contou as aventuras de Samantha, uma bruxa – uma criatura imortal – que desejava viver como uma mulher mortal, dona de casa, cuidando de sua família.
Nesse universo de linguagens culturais, a bruxa e a bruxaria cabem, portanto, na produção editorial em três tipos de literaturas: entretenimento, científica e devocional. A literatura de entretenimento já conta com bruxas em seu repertório desde o Século XVII, com Macbeth (Kerniski; Palma, 2016).
A bibliografia textual anotada, intitulada Shakespeare and the supernatural; a brief study of folklore, superstition, and witchcraft in ‘Macbeth’ […] publicada em 1905 por Margareth Lucy demonstra como a bruxa exercia fascínio na sociedade e os modos como foi tratada por Shakespeare, há muito tempo que a dualidade de suas personagens tem convivido entre nós, sejamos ocidentais ou orientais, estrangeiros ou brasileiros.
A literatura brasileira disponível sobre bruxa e bruxaria, principalmente a de entretenimento, é vasta e até os anos 1970, escritores e folcloristas brasileiros, como Monteiro Lobato, Inezita Barroso, Câmara Cascudo, Franklin Cascaes dentre outros exerceram influência na produção fílmica e televisiva brasileira e em algum alcance na música popular com algumas composições que trazem elementos mágicos atribuídos ou do mesmo universo bruxólico, como nas canções O Vira, do grupo Secos e Molhados, na canção Incompatibilidade de Gênios, de João Bosco e Aldir Blanc, também interpretada por Clementina de Jesus.
Vale o destaque para o acervo de desenhos e pinturas do folclorista Franklin Cascaes, exibido nas décadas 1990 e 2000 no Museu Victor Meirelles (Florianópolis, Santa Catarina). São elementais aéreos como os boitatás, o vampiro e até as bruxas, às vezes voam quando querem. Os elementais terrestres, lobisomens, saci, curupira, caipora e as bruxas que vagam pelos caminhos ermos da Ilha de Santa Catarina. Os elementais aquáticos como as sereias, a boiguaçu que sendo uma cobra também é terrestre e aquática. Neste Universo dominam seres inusitados, convivendo numa harmonia de extrema serenidade (Coelho, [2020], não paginado).
A literatura de entretenimento, romances, novelas, contos, poesias e peças teatrais, por exemplo, têm sido aproveitada para adaptações cinematográficas e televisivas, como a saga Harry Porter e o seriado de TV A Feiticeira. Franklin Cascaes escreveu o livro de contos O fantástico na Ilha de Santa Catarina. Para registrar as mudanças urbanas na ilha de Santa Catarina, o autor evoca uma tradição popular que contava a história da existência de bruxas na ilha.
Com base nesses contos, Paulo Figueiredo adaptou a história para a produção de uma minissérie televisiva, produzida pela extinta Rede Manchete e exibida de 4 de março a 28 de março de 1991 que foi intitulada: a Ilha das Bruxas, tendo Miriam Pires como uma das protagonistas (segundo papel da atriz como bruxa).
A literatura científica se difere da literatura de entretenimento e da literatura devocional pois, tem como objetivo a comunicação científica e não se ocupa de entreter nem sustentar a tradição devocional, religiosamente abordada.
Com isso, os tipos de publicações envolvem além de livros, outras comunicações, como as de origem acadêmica, por exemplo, dissertações e teses de doutorado, ou ainda, artigos científicos publicados em seriados de determinadas áreas do conhecimento, por exemplo, Sociologia, História, Antropologia e Teologia.
Na resenha do livro Tratado da Magia, elaborada por Rui Tavares (2022, não paginado), há a seguinte passagem:
prestes a ser expulso de Frankfurt, Giordano Bruno ditou ‘De magia’ a seu discípulo Jerônimo Besler, entre 1590 e 1591. Nesses dias, não se sabe em quantas sessões, Giordano Bruno começou por percorrer as diversas definições de magia e mago, demonstrando que a magia podia ser uma espécie de conhecimento – uma ciência. Giordano Bruno (Itália, 1548-1600) foi filósofo, escritor famoso por suas prodigiosas memórias, foi dominicano e precursor da ciência moderna. Ele foi acusado de blasfêmia, imoralidade e heresia e queimado vivo. Panteísta, aceitou o sistema heliocêntrico de Copérnico e considerou o universo infinito, tendo em si mesmo causa e princípio e expressando-se por infinitas formas.
Essa passagem demonstra que talvez tivesse sido essa a primeira manifestação do fenômeno bruxa e suas derivações como objeto de interesse científico. Já a dimensão devocional evoca a noção de literatura religiosa que segundo Topan (2020) se refere à coleção de obras literárias baseadas na religião por onde crenças e tradições religiosas são temas ou conceitos presentes na literatura religiosa.
No universo da literatura produzida para os praticantes da bruxaria, bruxas e bruxos, em distintas dimensões, escolas e interesses, escolhem a leitura de acordo com seus objetivos, contudo, o consumo de informação tem uma base estrutural de conhecimento religioso.
O precursor da inserção da literatura devocional pagã no mercado editorial mundial foi o famoso bruxo britânico Gardner, em 1950.
Gardner não podia escrever abertamente a respeito da “Arte” (da bruxaria) porque as antigas “leis contra a bruxaria” ainda permaneciam em voga e ele estaria sujeito a penalidades legais. Consequentemente, ele disfarçou sua obra como ficção e publicou em 1949, um ‘romance’ intitulado High magic’s aid, sob o pseudônimo de ‘Scire’. O livro era apresentado como ‘um romance histórico a respeito da Arte e continha até mesmo dois rituais de iniciação, mas não trazia qualquer referência à Deusa (Russell; Alexander, 2019, p. 199).
Outros precursores da bruxaria merecem ser lembrados: Frances Barret, Eliphas Levi, George Pickingill, Charles Godfrey Leland, S. L. MacGregor Mathers, Arthur Edward Waite, Aleister Crowley e Patricia Crowther. De acordo com o livro “A Bruxaria hoje”, de Gerald Gardner, importantes títulos de livros serviram para a abertura do caminho do campo editorial pagão, ao que veio a ser denominado por Wicca e foram eles: “Aradia, o Evangelho das Bruxas”, de Charles Godfrey Leland; “O Ramo de Ouro”, de James Fraser; “A Deusa Branca”, de Robert Graves e o primordial “O Culto das Bruxas na Europa Ocidental” de Margaret Murray.
No Brasil, o grande responsável pela introdução da Wicca em nosso meio foi Claudiney Prieto através do livro “Wicca – A Religião da Deusa”, de 1995 e que até hoje segue guiando diversos leitores e leitoras no caminho do conhecimento acerca da nova religião. A Wicca é definida por Prieto (2015, p. 20) como “uma religião cuja filosofia e prática baseiam-se na celebração da natureza e no culto à Deusa-Mãe, que personifica a própria Terra e o feminino”.
Uma leitura interessante acerca dos fundamentos da Wicca referindo-se como bruxaria moderna ou renascimento da Arte é destacada por Claudiney Prieto (2015) e por Ann Moura (2004). E a incrível biografia O mundo de uma bruxa, de Patrícia Crowther (2000); uma das mais famosas bruxas do Ocidente; amiga e confidente de Gerald Gardner, traz uma profunda história do renascimento da bruxaria.
Na biografia, Crowther (2000) relata o surgimento da Wicca cujo termo teve como propósito inicial marcar a diferença entre a complexa compreensão sobre bruxaria do passado sob a ideia de uma nova bruxaria. Além disso, a autora cita a forma pela qual foi usado nos tempos antigos e fala sobre a sua amizade com bruxas, bruxos e ocultistas da estirpe de Ray Bone, William Gray e Ruth Wynn-Owen.
No entanto, existe um ditado popular famoso no mundo da bruxaria que diz: “Todo wiccano é um bruxo, mas nem todo bruxo é um wiccano.” Isto prova que apesar da importância da Wicca, a bruxaria por si só não é apenas Wicca, ou seja, a Wicca é uma das diversas vertentes existentes na Bruxaria. Na dimensão editorial devocional, a Bruxaria pode ser compreendida como uma arte e prática religiosa, e como tal demanda tempo e dedicação para o desenvolvimento espiritual; e devocional quanto se busca o conhecimento e o potencial de ser um ser humano em busca da sabedoria e comunhão com a natureza.
A bruxa e sua bruxaria são percebidas como fenômenos culturais cujos sentidos foram e continuam sendo construídos de muitos modos, principalmente, em decorrência da popularização do livro, desde a concepção da imprensa de tipos móveis por Gutenberg aos dias atuais com os recursos da Internet.
E dependendo da origem editorial que as materializam, suas lembranças e memórias se ancoram nas páginas de livros que embalam os corações de crédulos e incrédulos. E em várias faces literárias, elas surgem ora como objeto científico ora como artistas ou protagonistas de entretenimento ao público; no entanto, sempre, de alguma forma, elas tanto são cultuadas quanto cultuam, devotadamente, a imaginação humana.
Ao pensar em uma organização para essa complexa relação editorial, esse universo cultural pode ser compreendido quando para percebê-las se torna possível justapô-las por tipo de literatura que as revelem. Por isso, para melhor responder como identificar bruxas – já que se estão em todas as partes– é consultar uma bibliografia. Obrigada pela leitura.
Referências
BESTERMAN, T. The beginnings of systematic bibliography. 2nd Ed. Nova York: Burt Franklin, 1940.
COELHO, Gelci. Franklin Cascaes – “As Bruxas”. Florianópolis: Museu Victor Meirelles, [2020]. Disponível em: https://museuvictormeirelles.museus.gov.br/exposicoes/temporarias/arquivo/1995-2/franklin-cascaes-as-bruxas/. Acesso em: 1 jun. 2023.
CROWTHER, Patricia. O mundo de uma bruxa. Lisboa: Bertrand, 2000.
DURANT, Will. The Age of faith. In: ______. The Story of Civilization. New York: Simon and Schuster, 1950. v. 4, p. 675.
GARDNER, Gerald. A bruxaria hoje. São Paulo: Madras, 2019.
KERNISKI, Bernadete; PALMA, Ane Cibele. As Bruxas na peça Macbeth, de William Shakespeare. Dia a Dia Educação, Curitiba, 2016. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoes_pde/2016/2016_artigo_lem_ufpr_bernadetekerniski.pdf. Acesso em: 29 jun. 2024.
KRAMER, Heinrich; SPRENGER; James. O martelo das feiticeiras: Malleus maleficarum. Tradução Paulo Fróes. São Paulo: Rosa dos ventos, 2020.
MACHEN, Arthur. Thesaurus incantatus. London: T. Marvell, 1888. Disponível em: https://archive.org/details/ldpd_7930686_000/page/n23/mode/2up. Acesso em: 14 jun. 2024.
MOURA, Ann. Origens da bruxaria moderna: a Evolução de uma religião pelo mundo. São Paulo: Gaia, 2004.
PRIETO, Claudiney. Wicca: A Religião da Deusa. São Paulo: Alfabeto, 2015. Edição Comemorativa de vinte anos.
RUSSELL, Jeffrey B.; ALEXANDER, Brooks. História da Bruxaria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2019.
TAVARES, Rui. Tratado da magia, de Giordano Bruno. [Resenha]. São Paulo: Martins Fontes, 2022.
TOPAN, Juliana de Souza. “Anjos e demônios estão em guerra”: o fantástico e o religioso na literatura para jovens adultos. Teoliterária, São Paulo, v. 10, n. 22, p. 256-274, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/teoliteraria/article/view/46406. Acesso em: 29 jun. 2024.
Como citar este artigo:
FERRAZ, Julianne. Como identificar bruxas? Rio de Janeiro: SBB, 2024. Disponível em: https://sociedadebibliograficabrasileira.wordpress.com/2024/07/04/como-identificar-bruxas/.