Por Eduardo Alentejo
Desastres naturais assim como doenças, conflitos e guerras acompanham a humanidade. O grande dilúvio reportado pela Bíblia é uma das histórias mais antigas de eventos devastadores. As ciências naturais revelam outros que foram e continuam capazes de modificar nosso planeta em sucessivos processos de mudanças climáticas e geológicas. Ao longo da história, muitas vidas foram ceifadas – vidas são frágeis, vidas importam.

Nos percursos catastróficos, continuamos carentes de informação fidedigna, de governos realmente honestos e justos. Em momentos de crises, o socorro emanado pelas próprias comunidades traduz a essência fraterna da humanidade – ainda que a crueldade se infiltre, eventualmente. Desde o dia 27 de abril de 2024, cidades do Rio Grande do Sul foram sucessivamente inundadas por chuvas torrenciais (Guimarães, 2024). Em meio a ausências de políticas suficientes de prevenção ou para rápidas respostas aos desastres, vale celebrar as vidas que foram salvas. Mas se a sociedade também é feita de memórias, como as pessoas reencontrarão seus lares, suas lembranças, seus afetos, seus amores, seus álbuns de retrato etc. diante de perdas e dores? Como reconstruir seus jardins, suas ruas, suas praças, seus arquivos, suas bibliotecas?
Os pontos que gostaríamos compartilhar com nossos leitores são: ajuda humanitária e cooperação para o desenvolvimento como primeiras respostas a estes acontecimentos. A ajuda humanitária visa aliviar os efeitos imediatos de catástrofes naturais (como enchentes e terremotos) e humanas (como guerras e conflitos violentos), sendo normalmente de pouca duração, terminando quando se dá um aliviamento da situação. A cooperação para o desenvolvimento tem finalidades de longo prazo, procurando alterar estruturas sociais e econômicas de países e regiões, de forma a combater problemas de origem bastante complexa.
Nessa postagem, trazemos um exemplo do qual grupos civis atuaram como socorristas, em ajuda humanitária e cooperação em um evento de inundação. Em 1966, o Rio Arno transbordou e a cidade de Florença, na Itália, foi devastada: os guardas municipais, bombeiros, militares e muitos cidadãos se disponibilizaram para salvar vidas que as águas do rio teimavam em levar (Oliveira, 2019).
O cineasta Franco Zeffirelli esteve na cidade na ocasião e realizou o documentário intitulado Florence: Days of Destruction, e registrou que os cidadãos lamentavam a perda de vidas e tentavam salvar o que podiam do aumento da água, do óleo usado para aquecimento e da lama.
No dia 4 de novembro, as inundações mais devastadoras da história da Itália varreram um terço do país. A mais atingida foi a cidade de Florença, com a sua arte de valor inestimável. As perdas em Florença são as piores que se pode imaginar depois das perdas de vidas humanas. Porque as imagens da nossa própria civilização estão se perdendo, afirma o apresentador e narrador Richard Burton no início do documentário. Franco Zeffirelli e eu [Richard Burton] decidimos testemunhar estes dias em Florença. […] o documentário mostra a violência repentina das enchentes, as águas subindo, expandindo, a corrente ficando mais forte, tornando-se torrencial (Florence…, 1966, transcrição e tradução nossa).
Vale destacar que monumentos, obras de arte e acervos bibliográficos foram soterrados na lama, incluindo a Biblioteca Nazionale de Florencia (Alentejo, 2023, p. 215). Nesse evento, civis tentaram amenizar os problemas causados pelas cheias, incluindo uma multidão de jovens voluntários de várias nacionalidades, chamados “os anjos da lama”, atuando desde o salvamento de pessoas quanto dos artefatos da memória artística e bibliográfica do berço do Renascimento:
As pessoas estão isoladas, encalhadas, indefesas. E então, com um esforço incrível, a vida recomeça. As pessoas ajudam-se umas às outras e depois chega ajuda de todo o mundo. A cidade está desolada, os danos são vastos e ainda incalculáveis. A grande herança artística de Florença foi devastada por suas pinturas, esculturas, livros e afrescos de valor inestimável. A Biblioteca Nacional foi invadida pela água e grande parte do seu grande acervo perdido para sempre, toda a igreja de Santa Croce foi invadida pela água e seus tesouros cobertos de lama e óleo. Centenas de pessoas trabalham dia e noite aqui em Santa Croce, diz um voluntário americano, procurando coisas, removendo, tentando salvar, cavando, limpando. Não eram mãos experientes, eram voluntários, soldados, estudantes, jovens de todo o mundo. Mas ninguém poderia ter trabalhado com mais cuidado e amor, apesar das péssimas condições, do cansaço, do cheiro de lama, do frio (Florence…, 1966, transcrição e tradução nossa).
O documentário Florence: days of destruction foi lançado menos de um mês após o desastre e teria arrecadado recursos dedicados aos esforços de reconstrução de Florença (Suesz, 2023, tradução nossa). Ao assistirmos o documentário, podemos perceber o poder das comunidades que unidas pela fraternidade envolveram outros grupos humanos nacionais e internacionais em torno da ajuda humanitária e cooperação da qual se estendeu por anos nas possibilidades de restauração de bens patrimoniais, da assistência à saúde dos sobreviventes e da recuperação da memória coletiva (1966 Florence…, 2019).
A eterna batalha contra o esquecimento do passado se iniciou desde a enchente em Florença; parcos recursos federais foram destinados à reconstrução da cidade e com isso, a constatação de que se não fossem a ajuda humanitária e a cooperação de civis unidos, vidas, suas memórias e suas culturas seriam mais afetadas pelo desprezo político dos governantes ao seu povo, a suas vidas e aos seus aparelhos culturais.
Vários planos foram propostos para resolver a situação ao longo dos 50 anos; e muitos livros foram escritos sobre as inundações, que foram adquiridos pelo centro de documentação de inundações, do CEDAF, tornando a inundação do Arno talvez uma das inundações mais bem documentadas de todos os tempos. Mas, tal como acontece com tantos perigos de inundação, com o tempo torna-se cada vez mais fácil esquecer a preparação para a próxima inundação (Suesz, 2023, tradução nossa).
Em relação ao patrimônio cultural diante do que ocorreu em Florença, a comunidade internacional se mantém atenta à segurança do patrimônio cultural universal diante de conflitos armados e desastres naturais que podem fazer desaparecer em pouco tempo os ícones culturais da civilização humana (Mattar, 2012).
Muitas convenções de alcance internacional foram formalizadas visando fornecer cobertura para proteção internacional aos bens culturais. Alentejo (2017, p. 922, tradução nossa) destacou, por exemplo: Convenção para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (Convenção de Haia, 1954), Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial (1972) e Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Folclore de 1989.
Em 2001, a 31ª Conferência Geral da Unesco foi impactada pelo ataque terrorista ocorrido nos Estados Unidos em 11 de setembro daquele ano, resultando na Declaração Universal da Unesco sobre Diversidade Cultural (UNESCO, 2012, não paginado, tradução nossa).que reafirmou a natureza universal dos bens culturais humanos do seguinte modo:
[…] o reconhecimento internacional de que bens e serviços culturais não devem ser considerados mercadorias ou bens de consumo. Essa afirmação parte do entendimento de que as sociedades são vetores de identidade, valores e significados, e, portanto, os direitos culturais são universais, indivisíveis e interdependentes.
Em relação às bibliotecas, sabemos que não são mais os únicos pontos de acesso à informação. No entanto, continuam a ser instituições importantes para diversas questões sociais, tais como fins culturais e educacionais e salvaguarda da memória coletiva. Nem tudo está ou estará em formato digital; nem tudo estará disponível para acesso total com base em redes digitais (Oppenheim; Smithson, 2008).
Estes fatores têm exigido constante questionamento destes equipamentos culturais procurando repensar o seu papel na sociedade atual. A literatura relata iniciativas bem-sucedidas que permitem prever um futuro brilhante para as bibliotecas. Mas, no caso de forças externas incontroláveis, como desastres naturais, tanto a sociedade como as bibliotecas tendem a sofrer o peso dos seus efeitos, com poucas oportunidades de se defenderem (Alentejo, 2017, p. 216, tradução nossa), contando somente com o poder das comunidades para ajuda humanitária e cooperação.
É preciso que todos nós contemos as histórias dessas comunidades: desde a emergência ambiental ao salvamento de vidas – fundamental e incondicional. Também devemos dar atenção aos processos de recuperação das regiões e empregos afetados, sem perdermos de vista os patrimônios culturais. No contexto das tragédias no Rio Grande do Sul, nós bibliotecários podemos contribuir de muitas formas. Por exemplo, a Escola FEBAB está com “inscrições abertas para workshops e palestras em prol dos colegas do Rio Grande do Sul”. São vários cursos e workshops on-line destinados à formação e aprimoramento técnicos na área da Biblioteconomia https://febab.org/2024/05/18/acoes-de-formacao-da-escola-febab-sos-biblioteconomia-rio-grande-do-sul/.
Os valores arrecadados serão transferidos para o Fundo de ajuda humanitária e cooperação instituído pela Associação Rio-Grande de Bibliotecários com o apoio da FEBAB. Dentre as várias oportunidades de aprendizado e aperfeiçoamento oferecidos, também indicamos o seguinte:
Workshop “Resgate e primeiros socorros de obras de acervos em emergências com água” https://s7538398.sendpul.se/sl/MTkyMzQ0NTU=/d37524b8eaac6dfd82172b5ca02aa0a28a76es6
Quando: 5 de junho, às 13h30
Quanto: R$30,00
Carga horária: 2h
Ministrantes: Andréia Wojcicki Ruberti, Coordenadora do Laboratório de Conservação Preventiva da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP. Nathalie Zavagli, Bacharel em Biblioteconomia pela USP. Estagiária do Laboratório de Conservação Preventiva da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP.
Resumo: O workshop sobre resgate de obras de acervos em emergências com água tem por objetivo apresentar técnicas de regate e primeiros socorros para obras atingidas por água de chuvas, inundações, entre outros, auxiliando profissionais que atuam em bibliotecas, arquivos e museus a resgatar e iniciar os primeiros procedimentos de salvamento e recuperação de livros, documentos, multimeios e outros suportes de informação.
“[…] nas mãos de bibliotecários, o poder é a capacidade de fazer para as nossas comunidades e, finalmente, a nossa sociedade, um lugar melhor” (Lankes, 2011, p. 80). Em nossa condição humana, a compaixão demonstrada é dever de nossa essência e motivo de nossa existência. A ética profissional nos impulsiona a fortalecer nossa profissão e a consolidar nossas atividades e bibliotecas como aparelhos culturais essenciais para nossas comunidades, principalmente àquelas atingidas pelas enchentes na região sul do Brasil. Obrigado por sua leitura.
Referências
1966 FLORENCE Flood Documentary Screening. Magenta, Florence, 2019. Disponível em https://www.magentaflorence.com/1966-florence-flood-documentary-screening/. Acesso em 28 maio 2024.
ALENTEJO, Eduardo da Silva. Controle Bibliográfico Nacional na Era Digital. Rio de Janeiro: SBB, 2023. Disponível em: https://archive.org/details/cbn-era-digital-e-alentejo. Acesso em: 28 maio 2024.
ALENTEJO, Eduardo da Silva. External issues affecting Libraries: an interaction in International and Comparative Librarianship. QQML Journal, [Limerick], v. 5, n. 4, p. 913-925, July 2017.
FLORENCE: days of destruction. Direção: Zeffirelli Franco. Narração: Richard Burton. Roteiro: Bruno Colombo. Música: Vlad Roman. Produção: Brice Howard. Entrevista: Frederick Hartt. Roma: RAI – Radiotelevisione italiana, 1966. 1 videotape (50 min), son., P&B.
GUIMARÃES, Saulo Pereira. Cronologia de enchente no Rio Grande do Sul revela tragédia anunciada; veja… – UOL, São Paulo, cotidiano, 10 maio 2024, não paginado. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/10/cronologia-enchente-chuvas-rio-grande-do-sul-2024-tragedia-sem-precedente.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 26 maio 2024.
LANKES, R. David. The Atlas of New Librarianship. Cambridge: Mit Press, 2011.
MATTAR, Eliane. Legislação patrimonial. In: SILVA, Maria Celina Soares de Mello e (org.). Segurança de acervos culturais. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2012. p. 33-52.
OLIVEIRA, Cristiane de. Florença e a inundação do rio Arno em 1966. Florença, 2019. Disponível em: https://guiaflorenca.net/florenca/florenca-e-a-inundacao-do-rio-arno-em-1966/. Acesso em: 29 maio 2024.
OPPENHEIM, C., SMITHSON, D. What is the hybrid library? Journal of Information Science, [London], v. 34, n. 1, p. 577-590, 2008.
SUESZ, Eric. Protecting Florence’s past from the future. [S.l.]: One Water Blog, 2023. Disponível em: https://www.autodesk.com/blogs/water/2023/02/20/protecting-florences-past-from-the-future/. Acesso em: 29 maio 2024.
UNESCO. The Memory of the World in the Digital Age: Digitization and Preservation. Vancouver: UNESCO/UBC, 2012, não paginado. Disponível em: . https://mowlac.files.wordpress.com/2012/05/unesco_vancouver_declaration_declarat ion-on-digitization-and-preservation-en.pdf. Acesso em: 28 maio 2024.
Fonte da Fotografia: Florence: days of destruction, 1966.